A incidência da obesidade é cada vez maior entre os adolescentes. Buscar tratamento multidisciplinar e desfazer a estigmatização em torno da doença são passos fundamentais para vencê-la.
Um dos relatórios mais recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2022, revela que cerca de 124 milhões de crianças e adolescentes no mundo têm obesidade. Mas, além do número superlativo, o que chama a atenção nesse levantamento é a falta generalizada de conhecimento : um entre quatro adolescentes não sabem que têm obesidade, e um em cada três pais ou responsáveis também não sabem que o adolescente está com a enfermidade. Doença multifatorial, crônica e progressiva, a obesidade pode trazer outras doenças, como a hipertensão arterial, colesterol alto, diabetes, alguns tipos de câncer, problemas cardiovasculares, renais, hepáticos e respiratórios. Além disso, adolescentes com obesidade têm chance aumentada de continuarem a serem portadores de obesidade na vida adulta.
“Um dos maiores desafios da obesidade é identificar sua causa com precisão, afinal, ela tem origem multifatorial. Dentre as causas, a genética, meio ambiente, fatores psicossociais, uso de determinados medicamentos, doenças endocrinológicas e até mesmo por um ambiente intrauterino não favorável, como o fumo durante a gestação. Outras doenças maternas, como o diabetes gestacional, também pode favorecer o ganho de peso da prole na infância”, explica a Dra. Ruth Rocha, endocrinologista pediatra do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz.
“A obesidade é um problema de saúde pública mundial que nenhum país ainda conseguiu resolver porque a solução não depende só do indivíduo, e o cenário hoje – a indústria alimentícia, a era dos aplicativos de celular, a falta de mobilidade – não colabora”
Dra. Ruth Rocha, endocrinologista pediatra
E, muitas vezes, a soma dos fatores potencializa o risco. “O paciente já tem uma predisposição genética e vive em um ambiente que favorece a doença. Vemos muito isso com crianças e adolescentes”, diz a nutricionista do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, Tarcila Campos. “Vivemos em um tempo em que o consumo de alimentos de baixo valor nutricional é muito estimulado e acessível.”
UM CAMINHO COM MUITAS VIAS
Assim como a doença é multifatorial, seu tratamento também deve ser multidisciplinar, principalmente quando consideramos essa etapa da vida. “As decisões do adolescente são muito baseadasem emoções e no prazer imediato, então ele ainda não pensa nas consequências, não se preocupa se terá diabetes ou hipertensão, por exemplo”, explica a Dra. Ruth. “São outros desafios nesse universo que impactam o tratamento da obesidade. Por isso, é preciso ter uma equipe multiprofissional acompanhando: endocrinologista, psicólogo, educador físico, nutricionista etc.”
Além das novidades em medicamentos para obesidade e diabetes, como a semaglutida e a liraglutida, que têm proporcionado bons resultados, a cirurgia metabólica também é uma estratégia eficiente no controle da doença. Sua indicação, inclusive, ganhou novos parâmetros no fim de 2022, facilitando o acesso a pessoas com diferentes graus de obesidade . “A cirurgia é indicada para pessoas com diabetes de IMC acima de 30 e para pessoas com obesidade de IMC acima de 35 sem comorbidades e que não tem resposta ótima ao tratamento medicamentoso”, explica o Dr. Ricardo Cohen, coordenador do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz. “Antes, era preciso ter comorbidades para ser candidato à intervenção. A nova diretriz considera a obesidade uma doença por si só. Além disso, hoje, temos muito mais consistência científica para mostrar que a cirurgia é eficaz e segura.”
“A obesidade não é um fator de risco, mas uma doença crônica e progressiva que precisa ser tratada”
Dr. Ricardo Cohen, coordenador do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Oswaldo Cruz
A fórmula de dieta saudável mais exercícios físicos é importante, mas como estratégia para prevenção. Para quem já tem a doença, a combinação não é eficiente para resolver o problema a longo prazo – e a falta de resultados pode frustrar ainda mais a pessoa. “Essas medidas são excelentes para prevenção ou como tratamento adjuvante a qualquer intervenção cirúrgica ou medicamentosa. Mas só uma mudança de estilo de vida não é efetiva”, aponta o Dr. Cohen.
E quando se fala em reeducação alimentar associada ao tratamento cirúrgico ou clinico é importante entender o que significa comer saudável. “Hoje, há muitos alimentos industrializados vendidos como saudáveis no mercado, quando, muitas vezes, trazem uma série de aditivos prejudiciais à saúde”, explica Tarcila. “Para melhorar os hábitos alimentares, não precisa restringir o cardápio a poucos alimentos, muito menos cortar nutrientes. Trata-se de aprender a fazer boas escolhas e comer com consciência. Comida de verdade ainda é o melhor caminho.” A especialista dá como exemplo um sanduiche de fast food versus o feito em casa. “Na sua cozinha, você tem controle sobre os ingredientes e o modo de preparo: pode fazer o hambúrguer com uma carne mais magra, como o patinho, uma fatia de muçarela, salada e pão integral. Pode fatiar uma batata inglesa e assar no forno ou até na fritadeira elétrica, por exemplo. Você mantém o prazer de comer o sanduiche, mas mais saudável.”
ESTIGMATIZAÇÃO E CULPA
Um dos fatores que mais dificulta o acesso ao tratamento é o preconceito. Culturalmente, a obesidade é vista como uma falta de cuidado ou de força de vontade da pessoa. “A obesidade e os portadores da doença são estigmatizados. Em muitos casos, culpa-se a pessoa”, diz o Dr. Cohen. “Logo, ao se sentir culpado, o indivíduo não procura auxílio médico.”
Segundo o Dr. Maurício Rossini, psiquiatra do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, isso é potencializado na adolescência, fase em que a aparência pode ser determinante para a vida social. E essa dimensão emocional da doença não pode ser desprezada. “O prejuízo social é, por si só, uma comorbidade. O adolescente com obesidade sofre bullying, se isola, pode ter quadros de depressão, ansiedade, piorando ainda mais a obesidade e trazendo danos importantes para a saúde mental”, explica o psiquiatra.
“Na adolescência, a obesidade pode trazer adoecimento psíquico e prejuízo social relevantes. O adolescente fica estigmatizado, é marcado pela obesidade, pode também passar a se autodepreciar, piorando os sentimentos de culpa e incapacidade”
Dr. Maurício Rossini, psiquiatra
CUIDADOS PARA A VIDA TODA
Como doença crônica e progressiva, a obesidade deve ser monitorada ao longo da vida. Ou seja, é preciso manter o acompanhamento com os especialistas envolvidos no cuidado. A frequência é determinada pelos próprios profissionais, levando em conta histórico e momento de vida da pessoa. Claro, com o tempo e a prática, fica mais fácil seguir as orientações, mas, como a Tarcila ressalta, mesmo com o quadro sob controle, as próprias mudanças da vida podem favorecer o ressurgimento da doença. “A vida não é linear. Um adolescente vai atravessar uma linha do tempo com algumas turbulências. Escola, vestibular, faculdade, sair de casa, entrar na vida adulta, no mercado de trabalho. São muitos processos que podem ser, em alguns momentos, estressantes, angustiantes, então a manutenção daquele ambiente saudável se torna desafiadora”, diz a nutricionista. “Por isso, o acompanhamento com a equipe, com profissionais que entendam essas fases da vida, é fundamental. Isso é muito comum em qualquer doença crônica, você muda totalmente a característica do tratamento, não é engessado.”
“Mesmo que o adolescente tenha a doença, a consciência deve vir de todos ao seu redor. A família tem que ser a primeira rede de apoio desse adolescente, ser tão responsável pelo tratamento quanto ele. A mudança, o cultivo de bons hábitos, as boas escolhas não dependem só dele”
Tarcila Campos, nutricionista
“De forma resumida, a adolescência é um mundo de conflitos. E tudo bem, são essas adversidades que nos ajudam a construir a nossa inteligência emocional”, completa o Dr. Maurício. “Mas, para se desenvolverem bem, com saúde física e mental, esses jovens precisam ser validados, acolhidos e guiados.”
Obesidade no Brasil e no mundo
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 124 milhões de crianças e adolescentes no mundo têm obesidade.
E a taxa de obesidade entre crianças e adolescentes de 5 a 19 anos deve dobrar até 2030.
No Brasil, 7% dos adolescentes entre 12 e 17 anos têm obesidade
Uma em cada três crianças brasileiras está acima do peso
Fonte: Dados do Ministério da Saúde; Movimento Saúde não se pesa
Como oferecer apoio a um adolescente com obesidade
Não discrimine. A obesidade é uma doença, não um “desleixo”, “fraqueza” ou coisa de “gente preguiçosa”
Não cobre. Já falamos disso, mas não custa repetir: a obesidade não é “culpa” de ninguém. Pressionar o adolescente para emagrecer, praticar esportes ou buscar uma vida social pode fazer com que ele se isole ainda mais
Envolva-se. Para tratar e controlar a doença, o adolescente precisa de incentivo. Estabelecer uma alimentação saudável em casa e estimular atividades para toda a família são exemplos de atitudes que podem ajudar – e todo mundo sai ganhando
Na ponta do lápis
O diagnóstico da obesidade é feito por meio de medidas da distribuição da gordura corporal, realizadas por diversos exames e pelas consequências que ela pode acarretar, como diabetes, dificuldade de mobilidade, dentre outras. O IMC (Índice de Massa Corporal), que é a relação entre o peso e altura, ainda é um dos parâmetros que pode ajudar no diagnóstico da doença.
Confira a seguir a classificação geral do IMC:
Abaixo de 18,5: baixo peso
Até 24,9: peso ideal
Acima de 25: sobrepeso
IMC entre 30 e 34,9: obesidade Grau I
IMC entre 35 e 39,9: obesidade Grau II
IMC acima de 40: obesidade Grau III
Você sabia? Adolescentes portadores de obesidade têm mais chances de continuar com a doença na vida adulta. Segundo a projeção da World Obesity Federation, a obesidade atingirá 30% da população […]
PODCAST: O que caracteriza a obesidade e como ela afeta as pessoas?
Neste episódio, a endocrinologista do nosso Centro Especializado em Obesidade e Diabetes, Dra. Ana Carolina Calmon, explica os muitos fatores que caracterizam a obesidade, as repercussões da doença na vida das pessoas a curto e longo prazos e as possibilidades de tratamento.
PALAVRA DO
ESPECIALISTA
Dr. Ricardo Cohen, coordenador do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Oswaldo Cruz
Não existe bala de prata para a obesidade
O tratamento da obesidade tem amplos benefícios na saúde e no bem-estar. Os avanços nos medicamentos para obesidade despertaram interesse, e a excessiva atenção da mídia promoveu uma demanda sem precedentes por esses novos agentes. No entanto, a abordagem da mídia pode propagar a visão de que existe uma solução mágica para a obesidade.
A obesidade é uma condição crônica com mecanismos multifatoriais complexos incluindo a genética, má adaptação metabólica, anormalidades neuroendócrinas e grandes mudanças no estilo de vida com composição de alimentos e desigualdades sociais de acesso a alimentação adequada. O tratamento eficaz da obesidade deve ser multidisciplinar, individualizado e adaptável ao longo do tempo. Muitas vezes, exigirá uma combinação de modalidades terapêuticas de longo prazo, semelhante à abordagem aceita para outras doenças crônicas. Os novos medicamentos não curarão a obesidade nem tornarão outras abordagens obsoletas, incluindo intervenções no estilo de vida e cirurgia metabólica.
Embora a última geração de medicamentos para obesidade mostre resultados médios de 15% a 20% de perda de peso corporal, aparentemente mesmo sem grandes intervenções no estilo de vida, alguns pontos merecem destaque. Primeiro, a perda de peso observada em estudos clínicos usando qualquer tratamento para obesidade tem uma distribuição de curva de Gauss, isto é, de resposta biológica a uma intervenção. Até 20% dos participantes não apresentam perda de peso clinicamente significativa. Além disso, até 10% dos pacientes terão dificuldades para tolerar os efeitos colaterais dos medicamentos.
Em segundo lugar, mesmo as pessoas que atingem as metas de tratamento com a farmacoterapia para obesidade podem decidir explorar a cirurgia metabólica para a manutenção a longo prazo da perda de peso e ganhos de saúde. Em terceiro lugar, os benefícios dos medicamentos para obesidade cessam se os medicamentos são interrompidos. Finalmente, independentemente do método de perda de peso ou do seu efeito sobre o peso corporal, um estilo de vida saudável continua a sendo o alicerce da otimização da saúde.
Intervenções no estilo de vida também são uma estratégia interessante. Para até 20% dos pacientes, otimizar a qualidade nutricional, erradicar comportamentos prejudiciais e incorporar atividade física sustentará com sucesso a perda de peso e os ganhos na saúde.
A cirurgia metabólica também continua sendo uma terapia eficaz para a obesidade, reduzindo eventos cardiovasculares, complicações microvasculares, alguns tipos de câncer e mortalidade geral. Como a obesidade é progressiva, 10-20% dos pacientes podem recuperar parte do peso após a cirurgia, muitas vezes resultando em controle abaixo do ideal ou recidivas dos problemas de saúde relacionados à obesidade. Alguns podem necessitar de intervenções adicionais para a perda de peso (p.ex., uso de medicamentos). É provável que o inverso também seja verdadeiro para a farmacoterapia, onde a indicação cirúrgica pode ser aliada aos remédios para os melhores resultados a longo prazo.
Combinar abordagens cirúrgicas e clínicas é prática padrão no tratamento de doenças crônicas (p.ex., doença coronariana). Em Oncologia, uma variedade de tratamentos adjuvantes (p.ex., quimioterapia, radioterapia ou imunoterapia) podem ser usadas além da cirurgia para melhorar os resultados. Da mesma forma, no tratamento do diabetes tipo 2 e obesidade, uma combinação de cirurgia metabólica e medicamentos está associada a um excelente controle glicêmico, perda de peso e até reversão de complicações do diabetes Pacientes com formas avançadas de obesidade geralmente têm respostas abaixo do ideal ao estilo de vida, intervenções farmacológicas ou cirúrgicas isoladamente, portanto, o tratamento combinado pode ser necessário.
Uma doença crônica multifatorial requer uma abordagem de longo prazo, multifatorial, flexível ao longo do tempo e adaptada ao indivíduo. Não devemos promover uma forma de tratamento descartando as outras opções. Precisamos combinar nossos esforços e usar as ferramentas certas, no momento certo e para a pessoa certa, para oferecer o melhor tratamento e maximizar os benefícios para a saúde de nossos pacientes.
*Artigo publicado no The Lancet em julho 2