Evitar o desperdício, ter mais atenção à saúde e se preocupar com o futuro do planeta. Esses são alguns dos motivos que estão transformando a nossa alimentação.
Há mais de cinco anos, quando era voluntária em uma ONG de proteção animal, Isadora Attab passou por um processo de descoberta e transformação.
“Percebi que era bastante hipócrita da minha parte continuar comendo alguns animais enquanto me preocupava com a vida e a saúde de outros. O cachorro não é tão diferente da vaca”, diz ela.
Começava aí, em 2014, sua dieta vegetariana. “Foram três anos sem comer carne para, só depois, começar a transição para o veganismo”, lembra ela.
Hoje, Isadora não come nenhum derivado animal e nem consome outros produtos de tais origens como cosméticos testados em animais e tecidos provenientes deles, como seda, couro e lã, entre outros.
A história de Isadora tem se tornado cada vez mais frequente e representa, hoje, uma fatia significativa da população. De acordo com a pesquisa mais recente do Ibope sobre o tema, de 2018, cerca de 14% dos brasileiros se declaram vegetarianos, o que representa um número absoluto de quase 30 milhões de pessoas – mais gente do que toda a população do Chile ou da Austrália – e um crescimento de 75% em relação às últimas estatísticas, de 2011.
Quando o assunto é veganismo, não existem dados apenas sobre esse estilo de vida, mas, de acordo com a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), um bom parâmetro seriam os dados comparativos com países em que tais levantamentos já foram feitos.
Nos Estados Unidos, por exemplo, cerca de 50% da população vegetariana se diz também vegana. No Reino Unido, o número cai para 33%. Tomando como comparativo o valor menor para não correr o risco de inflar esse comportamento, de acordo com a SVB, no Brasil, deve haver cerca de 7 milhões de veganos.
“Percebo que o orgânico acaba durando mais e, quando você vai recebendo aos poucos, evita que alguns produtos sejam comprados em larga escala para, depois, acabarem no lixo”
MUDAM-SE OS TEMPOS
Mas por que tanta gente tem deixado a carne de lado e investido em uma alimentação baseada em vegetais? “Para mim, envolve muito mais coisas do que a comida. É sobre ter autonomia e soberania alimentar, para que as pessoas não precisem depender desse sistema que oprime os bichos”, defende Isadora.
“Entender que, se plantarmos e colhermos, teremos condições muito melhores para nos alimentar e sobreviver. Porque a gente come um monte de coisa que não é comida: microplásticos, produtos processados, etc.
O veganismo em que eu acredito é esse, muito mais do que falar de benefícios para o meu corpo e a minha saúde. Ele é muito mais amplo e muito mais coletivo.” Os benefícios de reduzir – ou retirar – o consumo de carne da alimentação são uma realidade. Isadora lembra que, ao adotar uma dieta vegetariana, sentiu de imediato melhoras em sua digestão, disposição geral e até uma mudança na textura da pele e do cabelo.
“Um dos princípios da dieta vegana é a saudabilidade e a variabilidade dos alimentos. E, assim como qualquer dieta que tenha esses dois conceitos como base, será saudável e terá um impacto direto e muito positivo em nosso corpo”, explica a nutricionista Cláudia Stéfani Marcilio, coordenadora de pesquisa clínica do Centro Internacional de Pesquisa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz. A mudança de hábito da população também tem causado uma transformação no cardápio de muitos restaurantes.
O chef Fabio Vieira, que comanda as casas Micaela e Mixto Gastrobar, ambas em São Paulo, fez questão de dar atenção especial a esse assunto na hora de montar seus menus. “No Micaela, a gente sempre consegue adaptar os pratos para vegano e vegetariano. No Mixto, tenho dado muito foco para saladas. Estamos num momento em que se tem discutido muito sobre a questão das carnes. Então tenho feito muitos legumes assados, verduras também. O público pede cada vez mais.” Fabio ainda dá preferência para orgânicos e alimentos não industrializados em sua gastronomia. “Não temos a questão do orgânico em 100% dos pratos, mas eu uso o máximo que posso.
Pela quantidade que o pequeno produtor entrega, pode ser uma forma de evitar o desperdício”, explica. Esse é outro ponto levado a sério: todos os alimentos são embalados a vácuo – assim, se forem descongelados, por exemplo, podem ser recongelados sem problemas – e os talos e aparas são quase sempre utilizados para fazer caldos ou mesmo incluídos como acompanhamento nas receitas. “Percebo que o orgânico acaba durando mais e, quando você vai recebendo aos poucos, evita que alguns produtos sejam comprados em larga escala e depois vão para o lixo”, completa o chef, trazendo à luz uma discussão fundamental atualmente: o desperdício de alimentos. Na América Latina, são desperdiçados, anualmente, 127 milhões de toneladas de alimentos – sendo mais da metade desse volume frutas e verduras –, segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).
Só no Brasil, são 41 kg de alimentos por pessoa desperdiçados todos os anos. E o problema do desperdício também afeta severamente o meio ambiente: descartar alimentos de modo inadequado prejudica o ar e o solo com substâncias poluentes. O paradoxo do desperdício encontra-se em uma das questões mais graves que o planeta enfrenta: a fome. De acordo com a FAO, cerca de 821 milhões de pessoas passam fome em todo o mundo. Só na América Latina e no Caribe, quase 40 milhões de pessoas vivem subalimentadas.
Em 2017, uma em cada nove pessoas foi vítima da fome. Em uma relação que se retroalimenta, o problema também encontra suas raízes nas questões ambientais, como as mudanças climáticas – segundo a FAO, entre as principais causas do avanço da subnutrição estão, além dos conflitos armados e das crises econômicas, as variações do clima e fenômenos naturais extremos, como secas e enchentes. A estimativa é a de que, em 2017, 83% das perdas e dos danos à agricultura tenham sido causados por secas em todo o mundo, e 17% por inundações. Vale ressaltar, ainda, que a desnutrição não está apenas na falta de comida, mas também na má alimentação, que acarreta na obesidade, outro problema de ordem global já considerado uma epidemia. O mesmo relatório da FAO mostrou que 672 milhões de pessoas são obesas no mundo – o que equivale a mais de uma em cada oito.
O crescimento acelerado da obesidade é um fator bastante preocupante, principalmente entre crianças. Na América Latina e no Caribe, são 3,9 milhões de meninas e meninos com sobrepeso. É o segundo maior percentual de crianças com excesso de peso no mundo. Além disso, nessas regiões, cerca de um em cada quatro habitantes são considerados obesos.
“A vida nos grandes centros fez com que a gente parasse de apreciar a alimentação e a encarasse, no dia a dia, apenas como sobrevivência”
MUDAM-SE AS VONTADES
Ainda que a discussão seja, de fato, muito mais ampla do que o que colocamos no nosso prato, é geralmente na comida que as pessoas começam a investir quando querem fazer uma mudança de estilo de vida.
E essa é também uma das formas mais interessantes e eficazes de evitar algumas das doenças que mais matam no país. Coordenador nacional do PURE (The Prospective Urban Rural Epidemiology) no Brasil, estudo que acompanha, há 12 anos, mais de 300 mil pessoas em quase 30 países diferentes, o Dr. Álvaro Avezum, cardiologista e diretor do Centro Internacional de Pesquisa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, aponta para um adoecimento sistêmico na população mundial causado, em grande parte, pelos maus hábitos alimentares. “A alimentação não saudável, ao lado do colesterol alto, da pressão alta e da obesidade abdominal, representa metade dos principais motivos que levam aos infartos e acidentes vasculares cerebrais.
Isso significa que muitos deles poderiam ser evitados sem precisarmos de nenhum novo conhecimento técnico ou científico”, alerta o especialista. O PURE é um estudo populacional que avalia a associação do comportamento (estilo de vida) dos indivíduos ao longo do tempo, meio ambiente, genética, entre outros fatores, ao risco de adoecimento da população (eventos cardiovasculares, câncer, doenças respiratórias, renais, morte cardiovascular, por câncer e por outras causas).
Em relação aos questionários e hábitos alimentares pesquisados com os participantes, alguns resultados mostraram a importância de prestarmos grande atenção ao que ingerimos. “Quanto maior o consumo de frutas e vegetais, menor o risco de morte. A pessoa aumenta sua sobrevida só de fazer essa modificação na alimentação”, diz o Dr. Álvaro. Em relação ao consumo de carboidratos e de gorduras, a curva é inversa, ou seja, o primeiro aumenta as taxas de mortalidade e o segundo (exceto gorduras trans) reduz essas taxas.
Outro ponto importante de reforçar é que, aqui no Brasil, temos uma diversidade de alimentos gigantesca que está a favor de quem quer diminuir ou excluir o consumo das carnes e dos alimentos ultraprocessados (biscoitos, misturas para bolo, temperos instantâneos, molhos prontos, salgadinhos, nuggets etc.) do cardápio ou simplesmente adotar uma alimentação mais saudável e balanceada.
“O clássico arroz com feijão é, por si só, um prato bastante completo do ponto de vista nutricional”, reforça Cláudia, que é também assistente de coordenação do protocolo populacional do estudo PURE. “É importante que, ao adotar um padrão alimentar sem carnes e derivados animais, por exemplo, a pessoa tenha os devidos cuidados para que não falte nenhum nutriente essencial, buscando o acompanhamento de um nutricionista e/ou profissional especializado, e que essa modificação aconteça pela crença nos benefícios e na filosofia disso, não apenas pelo modismo”, pontua.
“A vida nos grandes centros fez com que a gente parasse de apreciar a alimentação e a encarasse, no dia a dia, apenas como sobrevivência. Quantas refeições nós fazemos sem nem pensar sobre o que estamos comendo?”, pergunta ele.
A lógica do fast food como o conhecemos, aplicada às grandes cadeias de lanchonetes, tem se tornado vigente em todos os campos da alimentação. Italiano, o Dr. Andrea está no Brasil há 24 anos e, além de especialista no assunto, é um apaixonado por comida. Depois de muito investir em sua formação acadêmica, ele também decidiu estudar o conceito de mindful eating, teoria que acredita no impacto positivo até mesmo na saúde quando temos atenção plena no momento em que estamos nos alimentando.
“Comer é algo extremamente importante por uma questão bioquímica, para nos manter vivos, mas é também um ritual, um momento de autocuidado. Se a gente come sempre correndo, sempre preocupado com o que virá depois ou com o que acabamos de fazer, ou distraído por barulhos excessivos, a tela da TV ou do celular, vamos fazer isso no automático, sem prestar atenção e sem curtir aquele momento”, diz.
“Para mim também tem sido um desafio, mas encaro como algo positivo. Às vezes, preciso almoçar em 15 minutos, mas, por mais curto que seja o tempo, é fundamental estar presente naquele ato.”