QUAL É O SEU FILTRO

No começo era tudo muito divertido: focinho de cachorro, orelhas de elfo, tiaras de flores, máscaras de personagens famosos. Aos poucos, os filtros das redes sociais, em especial do Instagram, foram ficando cada vez mais refinados e sofisticados. Passar maquiagem? Que nada! O próprio aplicativo passou a fazer isso pelo usuário. Hoje, os filtros praticamente fazem uma plástica na face das pessoas. Narizes são afinados, bochechas ficam diminutas, ressaltando as maçãs do rosto, e os lábios tornam-se carnudos à la Angelina Jolie. O recurso é tão fácil de usar que é como se todo mundo tivesse um Photoshop para chamar de seu. Se as redes sociais já eram o depositário do ego de cada um, com selfies e fotos tiradas sempre dos melhores ângulos, com os filtros elas se tornaram um grande catálogo virtual de beleza.

“De tanto usar filtro, uma hora a pessoa já nem se reconhece mais como realmente é”.

Graça Camara,
psicóloga do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz

Os problemas decorrentes desse fenômeno não demoraram a chegar. Postar selfie, por si só, já mexeu com a autoimagem das pessoas. De acordo com um estudo da Academia Americana de Cirurgia Facial, Plástica e Reconstrutiva, 55% dos cirurgiões plásticos faciais atenderam, em 2017, pacientes que queriam passar por cirurgias para aparecer melhor em selfies. Em 2013, eram apenas 13%. Os entrevistados notaram ainda um aumento significativo entre pacientes com menos de 30 anos. Mais recentemente, os cirurgiões americanos notaram um movimento ainda mais curioso: adolescentes começaram a levar suas próprias fotos com os filtros como referência para as cirurgias estéticas.

“De tanto usar filtro, uma hora a pessoa já nem se reconhece mais como realmente é”, alerta Graça Camara, psicóloga do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Em casos extremos, essa pessoa pode se esconder atrás da imagem virtual, sua versão filtrada, e ter até dificuldade em estabelecer relacionamentos na vida real – o que pode se agravar em um cenário como o atual, de pandemia, quando todos estão trancados em casa e vivendo mais on-line do que nunca.

Camila Rocha, 34 anos, fotógrafa de São Paulo, não era uma entusiasta dos filtros em um primeiro momento, nem mesmo dos engraçadinhos. “Todos eles, até os de cachorrinho, afinavam meu nariz e clareavam meu tom de pele”, conta. “Eu parecia uma pessoa que não era. Não era uma brincadeira”. Isso até o dia em que começaram a aparecer filtros específicos para mulheres negras. “A Rita Carreira, empresária e influenciadora, criou um filtro que era a minha cara, não me deixava branca. Comecei a usar e pensei: uau, agora eu entendo porque todas as blogueiras só aparecem de filtro. Você fica viciado naquela imagem”.

O máximo que Camila usava de filtro, até então, eram os que alteravam a granulação da fotografia ou cores da paisagem. Quando se viu viciada no que alterava a imagem do rosto, teve um momento de autorreflexão e percebeu o perigo. “Cheguei a levantar essa questão nas minhas redes: gente, é preciso tomar muito cuidado com esses filtros! Principalmente na quarentena, quando a gente só vê as pessoas pelas câmeras do celular”.

Graça lembra que grande parte dos usuários das redes sociais é adolescente, são nativos digitais que já nasceram se vendo em telas. E adolescente é muito mais suscetível à pressão social. “Eles não têm ainda uma compreensão da vida nem uma aceitação do próprio corpo. Querem fazer par – te, ser igual aos que são considerados bonitos e bem-sucedidos”, diz a psicóloga. Isso tudo pode gerar uma insatisfação que leva a distúrbios de imagem (a pessoa não se vê como realmente é), alimentares (como bulimia e anorexia) e até a distúrbios psiquiátricos, como depressão e transtorno de ansiedade. Um único comentário negativo sobre alguma parte do corpo – situação retratada no documentário O Dilema das Redes, da Netflix pode minar a já baixa autoconfiança. “No fim das contas, tudo é uma questão de autoestima, as redes sociais só amplificam o problema. Quando a pessoa não está bem consigo mesma, começa a ter problemas com a autoimagem, o que pode levar a situações extremas, como não sair de casa ou até a fazer consecutivas plásticas a ponto de ficarem deformadas”, afirma Graça.

DIGA-ME QUEM SEGUES…

Uma dica dos especialistas para quem se sente oprimido por beldades e barrigas tanquinho é avaliar quem você segue nas redes sociais. Se no seu feed só aparecem musas fitness e celebridades cheias de filtro, está na hora de tornar a lista mais diversa. Inclua ícones do body positive ou, ainda melhor, influenciadores que tratem de outros temas que não só a beleza. No caso dos adolescentes, é preciso uma atenção especial dos pais sobre o comportamento deles em relação à autoimagem e às redes sociais. “Ele ou ela anda muito preocupado com isso? Espera demais a reação das pessoas aos posts? Tem reações exageradas aos comentários?”, questiona a psicóloga. “O amparo social é fundamental para os adolescentes, mas de uma forma que não se desvalorize nem invalide a insegurança deles.”

“É preciso tomar cuidado com esses filtros, principalmente na quarentena, quando a gente só vê as pessoas pelas câmeras”

Camila Rocha, Fotógrafa

IMPERFEIÇÕES EM EVIDÊNCIA

Otávio Machado de Almeida, cirurgião plástico que atende no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, tem notado um aumento considerável na procura por procedimentos estéticos ligados aos novos padrões estabelecidos pelas redes sociais, em especial por causa de perfis de artistas e influenciadoras – grandes adeptas dos filtros. Cirurgias de nariz, mama, lipoaspiração e redução de abdômen continuam sendo os procedimentos mais buscados por seu público, 90% feminino e cada vez mais jovem.

O médico destaca ainda que a cirurgia nas pálpebras é uma que vem crescendo, em especial ao longo do último ano, por causa do uso de máscara na pandemia. O rosto, aliás, nunca esteve tanto em destaque: é ele que aparece mais nas selfies, nos vídeos das redes sociais e agora nas inúmeras reuniões virtuais nesse mais de um ano de reclusão. As imperfeições nunca estiveram tão em evidência – e daí a ajudinha dos filtros nessas horas.

Cirurgião desde os anos 1990, ele faz um paralelo entre as adolescentes que buscavam cirurgias estéticas naquele tempo pré internet e as de hoje. “As meninas de 16 anos de hoje são muito mais ansiosas e resolutas por uma cirurgia do que as dos anos 1990. Primeiro porque elas não saem do celular, e ficam mostrando as fotos delas, das amigas e das influenciadoras no consultório. A exposição a outros corpos e rostos é muito maior”, explica. “E elas já chegam cheias de argumentos e conhecimento sobre a cirurgia, já pesquisaram tudo.”

O médico destaca ainda outro fenômeno que as redes sociais trouxeram: a busca por profissionais dentro do próprio Instagram. “As pessoas querem ver imagens e saber quem eles operaram. Os profissionais, por sua vez, exibem seus trabalhos de forma milagrosa, com ‘antes e depois’ que seduzem as candidatas à cirurgia”.

NARRATIVAS DE FELICIDADE

Seguir influenciadoras que vendem um corpo incrível e uma vida perfeita pode ser tão nocivo quanto o uso de filtros. Além de levar garotas cada vez mais novas aos consultórios médicos, como aponta o cirurgião, faz com que os seguidores muitas vezes se sintam infelizes em relação às suas próprias vidas. Foi o que percebeu a pesquisadora Cinthia Guedes em seu mestrado “Imagens da sociedade do desempenho: um estudo sobre as narrativas de felicidade no Instagram de influenciadoras digitais brasileiras”, defendido na área de Comunicação e Semiótica da PUC-SP.

Em 2018 e 2019, Cinthia passou duas semanas analisando os comentários dos seguidores de duas grandes influenciadoras brasileiras, ambas com mais de 8 milhões de seguidores, no período entre o Natal e janeiro, quando, segundo ela, os posts que mostram uma “vida feliz” aumentam substancialmente. “Elas querem mostrar os looks do dia, as viagens para praias lindas como Fernando de Noronha, e seus corpos esculturais em biquínis.” A ideia era mostrar como o ato trivial de acompanhar as narrativas de felicidade dos outros está inserido no cotidiano de milhares de pessoas, e quais são as consequências disso.

A cirurgia nas pálpebras é uma que vem crescendo, em especial ao longo do último ano, por causa do uso de máscara na pandemia”

Dr. Otávio Machado de Almeida, cirurgião plástico do Hospital Alemão Oswaldo Cruz

Os comentários, em geral, variavam entre os de enaltecimento – “Que corpo maravilhoso!” e “Minha musa!” – e os que Cinthia classificou como de “não felicidade”: “Cuspi meu panetone agora mesmo” ou “Correndo para a academia agora”. Esta segunda categoria mostra um nível de infelicidade do usuário consigo mesmo e uma autocobrança enorme, sempre se baseando em uma referência que, como classifica a pesquisadora, é irreal e efêmera.

“A felicidade do Instagram está muito ligada à juventude, magreza e poder aquisitivo”, destaca Cinthia. “Mas é uma imagem estereotipada da perfeição, construída com equipes imensas e fotos super trabalhadas. Seguir esses padrões é insano, impossível. Até porque ninguém está imune à gordura e à velhice, coisas que, no Instagram, devem ser evitadas ao máximo, ou pelo menos adiadas.” Cinthia, que é designer, se sentiu motivada a fazer a pesquisa após assistir ao episódio “Nosedive”, da série britânica Black Mirror, no qual a personagem fica viciada nas notas que ganha nas redes. Mas também teve uma motivação pessoal: ela mesma, como usuária de Instagram, começou a se sentir oprimida e infeliz com o bombardeamento de imagens perfeitas. Estar atento a quem se segue, aliás, é uma dica importante para quem quer se desintoxicar das narrativas irreais de felicidade .

“Meu objetivo não era definir o que é a felicidade ideal, mas mostrar que cada indivíduo deve encontrar o seu caminho e criar um senso crítico em relação aos discursos de Instagram, que são, no mínimo, ilusórios”, finaliza.

REFLEXÕES ANTES DE FAZER CIRURGIA

O Brasil é o segundo país com o maior número de cirurgia plástica no mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos. E a procura por procedimentos estéticos tem se dado entre mulheres (principal público) cada vez mais novas. “O ideal é que, via de regra, a jovem espere mais um pouco antes de uma decisão importante como essa”, diz o cirurgião plástico Otávio Machado de Almeida. “É preciso maturidade inclusive para enfrentar a cirurgia por si só”. Se ainda assim a decisão for pelo procedimento, além da busca por um bom hospital com uma equipe de retaguarda, o médico destaca alguns cuidados importantes: “Pesquise o nome do profissional, veja se não há um exagero sobre os feitos dele nas redes sociais, se é credenciado da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica e se não há processos contra ele no Conselho Regional de Medicina”. Lembrando que as consequências de uma cirurgia malfeita vão de deformações a cicatrizes mutiladoras, podendo chegar até a óbito.

ME DEIXA MAIS MAGRA?

Antes mesmo das redes sociais e dos filtros, a fotógrafa Camila já era uma apaixonada por fotos. Quando os celulares ainda não tinham câmera, ela não largava sua Cybershot e fazia, inclusive, selfies com a máquina digital. Como mulher negra e acima do peso, nunca se sentiu representada e, por isso, não se sentia muito confortável nas imagens. “As pessoas falavam que eu era gorda e aquilo mexia comigo, sofri bullying”, recorda. Ela tinha uma neura em especial com os braços; passou muito tempo usando camisa longa e escondendo o corpo como um todo. “O que é triste, né? Ignorar o formato do meu corpo e ignorar o espelho me fez muito mal, me anulei muito. Só fui me entender como mulher depois dos 25 anos.”

A história do braço voltou à tona muitos anos depois quando, já fotógrafa, passou a viver uma situação que se repetia a cada festa de criança que ela era chamada para registrar. “Toda vez que eu falo: vamos juntar aqui e fazer uma foto? Sempre vem alguma convidada e pede: me deixa mais magra? Dá para cortar meu braço da foto? Tudo naquele tom de brincadeira, mas que você sabe que é verdade, que ali tem trauma.”

Para ela, já nem era mais uma questão. “Eu tinha libertado meu braço, em especial depois que comecei a ver mulheres com corpos parecidos com o meu postando fotos lindas nas redes sociais”, conta, destacando que o mesmo espaço que oprime com suas beldades e filtros é também o palco de um movimento contrário, o body positive, um olhar mais positivo e abrangente sobre todos os tipos de corpo.

“Seguir os padrões do Instagram é impossível. Até porque ninguém está imune à gordura e à velhice”

Cinthia Guedes, pesquisadora na área
de Comunicação e Semiótica da PUC-SP

BELEZA É DIVERSIDADE

O movimento body positive é anterior à internet, nasce na cena da contracultura e do feminismo dos anos 1960 e 1970, embalado pelo desejo de um corpo livre de regras. Mas foi graças às redes sociais que ele cresceu e se espalhou pelo mundo, em especial por meio de perfis de mulheres que postam seus corpos tais como são, e #SemFiltro. Não deixa de ser um antídoto ao excesso de beleza roboticamente construída no Instagram e similares.

A psicóloga do Hospital Alemão Oswaldo Cruz destaca a importância do movimento em um país diverso como o Brasil. Em sua experiência clínica, ela vive uma constante: a insatisfação com a autoimagem por causa de um padrão único de beleza – caucasiano, ocidental e europeu. “A gente vive em uma sociedade que supervaloriza a aparência física e não leva em conta que a beleza é cultural. Isso num país miscigenado é ainda mais perverso”, pontua.

Inspirada pelas musas brasileiras do body positive, Camila estava liberta das neuras do braço gordo. Faltava libertar outras mulheres. Foi aí que surgiu um projeto pessoal da fotógrafa, o “Braço gordo, Braço forte”. A partir de autorretratos em preto e branco, ela bordou as fotos com linhas vermelha e amarela, representando respectivamente as amarras que ela vivia antes e as cicatrizes que ficaram desse período. O trabalho pode ser visto no site do projeto (bracogordo.46graus.com), por meio do qual ela recebe mensagens de mulheres com relatos semelhantes. “Teve gente que contou que passava fita adesiva no braço para ele ficar menor e que desenvolveu alergia por isso”, conta.

Camila se preparava para fazer a parte dois do projeto, fotografar outras mulheres e seus braços gordos e fortes, quando a pandemia começou. “Assim que der, vou retomar, porque ainda tem muita mulher presa nessa questão. E é só braço! Braço que levanta, que faz, que move tanta coisa”, finaliza, com a certeza de que o melhor filtro que existe, afinal, é o do amor próprio e de um olhar mais generoso sobre si mesmo.

ESPELHO, ESPELHO MEU

Um estudo feito pela Universidade York, no Canadá, publicado em 2018, fez o seguinte experimento: pediu a universitárias que fizessem uma selfie e a publicassem no Facebook ou no Instagram. Uma parte do grupo só podia fazer uma foto e publicá-la sem edição, e a outra metade podia fazer quantas fotos quisesse e retocálas usando filtros. Todas as participantes, mesmo as do segundo grupo, se sentiram menos atraentes e menos confiantes depois de postarem as selfies do que quando entraram no experimento. Uma vez publicadas as fotos, elas só focavam nos aspectos que julgavam negativos de sua aparência. Algumas, inclusive, quiseram saber se alguém tinha curtido a foto antes de relatarem como se sentiam sobre a postagem.

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