A tecnologia está cada vez mais presente em todos os aspectos da vida social, profissional, pessoal e vem transformando, inclusive, nosso jeito de nos relacionar. Afinal, vamos mesmo precisar de um smartphone para tudo ou chegaremos ao limite da vida virtual para, enfim, retomar o contato mais humano?
Começo esta reportagem com um desafio: será que você consegue chegar ao fim do texto sem checar seu smartphone? Ainda que o “sim” como resposta possa parecer óbvio em um primeiro momento, ler uma matéria como esta pode ser um evento constantemente interrompido por distrações digitais, como notificações de e-mail, WhatsApp ou Instagram. Talvez movido por essa provocação, você siga em frente até o fim do texto sem nem tocar no aparelho. Então, vamos a um novo questionamento: tente se lembrar do último encontro que você teve, seja com um grupo de amigos, com a família ou com a parceira ou parceiro. Quantas vezes você ou seus interlocutores “saíram” da conversa para dar uma olhada na telinha? Mesmo quando achamos que estamos no controle, a influência da tecnologia em nossas vidas se dá de forma muito mais in – tensa do que nos damos conta.
Intensa a ponto de levar crianças e adolescentes para as ruas da Alemanha, em setembro do ano passado, com cartazes que diziam: “Brinquem com a gente, não com seus celulares”, em protesto contra os pais e mães que não largam o aparelho. Se a atitude dos pequenos parece exagerada, diversos estudos mostram que ela é mais do que justificada. A revista acadêmica Developmental Science divulgou recentemente uma pesquisa que aponta que crianças entre 7 meses e 2 anos são mais irritáveis e menos curiosas para explorar o mundo quando as mães ficam muito tempo no telefone. Outro estudo, conduzido pela AVG, gigante de segurança online, entrevistou 6 mil jovens entre 8 e 13 anos e mostrou que a maioria se sente desimportante quando os pais ficam no celular.
“A Pina combinou comigo e com o pai dela que, quando a gente estiver muito tempo no celular, ela pode chamar nossa atenção”
Vanessa Rozan,
38 anos
“A Pina combinou comigo e com o pai dela que, quando a gente estiver muito tempo no celular, ela pode chamar nossa atenção. Ela fala: ‘Mamãe, papai, vocês vão perder minha infância’”, conta a maquiadora Vanessa Rozan, 38 anos, sobre a filha de 7.
Para estimular a vida offline da menina, Vanessa incentiva o lado artístico dela – Pina sempre gostou de pintar, desenhar e recortar. Mas sem radicalismo: os desenhos da Netflix e os joguinhos no smartphone da mãe também têm vez. Não existe um limite de horário estabelecido por dia, mas a estratégia é sempre oferecer uma brincadeira analógica primeiro, para dar vazão às aptidões manuais de Pina. “A verdade é que nenhuma pessoa do mundo vai oferecer o tanto de possibilidades que um smartphone pode te dar. Está tudo ali, a um clique: um furo de reportagem, um meme, uma fofoca, uma série. A princípio, por impulso e adição, aquilo vai ser sempre o mais legal. Você só recebe, não precisa ceder energia nenhuma. Mas tento ensinar para a Pina que, nos relacionamentos com família e amigos, existe uma troca, você tem que se colocar, e isso é muito positivo”, diz a maquiadora, que, dona de um perfil no Instagram com mais de 1,1 milhão de seguidores, se mantém conectada o tempo todo, mas sempre vigilante ao significado dessa relação com a tecnologia.
“Ao mesmo tempo que me ajuda a resolver as burocracias do dia a dia, como chamar um motoboy para entregar algo ou fazer uma reunião por FaceTime, sei que sou refém desse negócio que está sempre na minha mão”, pondera. Outra preocupação de Vanessa, que é apresentadora do programa Esquadrão da Moda (SBT), é usar suas redes para provocar reflexões sobre feminismo, padrões de beleza e maternidade real, conteúdo que gera bastante interação com as mulheres que acompanham seu trabalho. Nos stories do Instagram, ela faz perguntas sobre os temas e compartilha as respostas das seguidoras, comentando e mostrando diferentes pontos de vista, além de reforçar que a vida que vemos nas telas nem sempre corresponde à realidade. “Às vezes, posto uma foto linda, toda maquiada, mas naquele momento estava mesmo era de cara lavada, sem ter dormido direito porque a Pina estava doente. Tento dizer isso na legenda ou nos comentários. Temos que usar a tecnologia de maneira lúcida.”
O CORPO SENTE
O abuso da tecnologia também traz consequências físicas
Dores de cabeça, tensão nos ombros e até taquicardia podem ser alguns sinais do excesso de tempo que passamos no virtual, mas a qualidade do sono é um dos maiores pontos de atenção: a luz emitida pelas telas de celulares e computadores estimula o cérebro e dificulta nosso relaxamento, além de poder causar problemas visuais se os gadgets forem usados com muita luminosidade em ambientes escuros. “Alterações bioquímicas de forma recorrente, contínua e prolongada vão, segundo alguns estudos, modificando a estrutura cerebral.
Regiões do cérebro como o giro do cíngulo, muito relacionado a questões de emoção, comportamento e relacionamento social, ficam menos ativas, como se sofressem uma atrofia, em pacientes que usam tecnologia em excesso. Isso pode levar a vários graus de entorpecimento emocional”, explica o neurologista Dr. Eli Faria Evaristo. O tratamento, nesses casos, é o acompanhamento psicológico e, se necessário, psiquiátrico. Mas existem mecanismos que podemos adotar no dia a dia para tentar reduzir esse consumo (veja boxe na pág. 22). “Tecnologia sempre vai existir e acredito que a resposta para como lidaremos com ela já está aparecendo. Cada vez mais as pessoas estão buscando se reconectar consigo mesmas, com o outro e com a natureza para resgatar essa riqueza que as relações não digitais têm”, completa o psicólogo Danilo Faleiros.
A VIDA IMITA A WEB
Além da interação com as outras pessoas, a tecnologia também vem mudando a maneira como nos relacionamos com nós mesmos. O efeito de assistir a essa vida perfeita dos outros nas redes sociais, onde só se compartilham fotos de sorrisos e conquistas, pode gerar ansiedade, irritabilidade e até sintomas de depressão. “Essa dependência também pode prejudicar nossa tomada de decisão. O smartphone oferece recompensas imediatas e isso faz com que, quando precisamos escolher algo que vai ser benéfico no médio ou longo prazo, prefiramos a gratificação instantânea, o que nem sempre é o melhor caminho”, explica o psicólogo Danilo Faleiros, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz.
Essa dependência acontece porque receber uma curtida em uma rede social ou uma notificação de que alguém de que você gosta enviou uma mensagem é um estímulo que libera no nosso organismo serotonina e dopamina, neurotransmissores ligados a prazer e recompensa. Diversos estudos ao redor do mundo já mostram que pessoas que usam muito smartphones têm níveis aumentados dessas substâncias. Para saber se estamos pelo menos um pouquinho viciados, Danilo propõe um exercício. Você já esqueceu o celular em casa e se pegou pensando no que faria sem ele? “É assim que um fumante se sente quando esquece o cigarro. O sintoma de abstinência é muito parecido”, responde.
Ainda que não oficializado pelo Conselho Federal de Medicina, o vício em tecnologia é uma realidade já observada nos consultórios. Já existe a classificação científica de transtorno para pessoas adictas em sexo virtual ou jogos online, de acordo com a quinta edição do Manual de desordens e transtornos mentais, publicada em 2013. “Isso mostra que, com o tempo, o uso excessivo de smartphones, celulares e computadores também podem ser classificado como um transtorno médico”, completa o Dr. Eli Faria Evaristo, neurologista do Hospital.
À MODA ANTIGA
Se a ideia de futuro próximo, importante que se diga se parece assustadoramente com uma realidade como a do filme Her, de Spike Jonze, no qual, em um mundo cada vez mais digitalizado, um homem se envolve amorosamente com sua assistente virtual, vale observar que a saturação tecnológica está fazendo muita gente dar alguns bons passos para trás. Caso do próprio Vale do Silício: na meca da economia digital californiana, os barões da tecnologia estão mandando seus filhos para escolas e jardins de infância onde celulares, tablets e computadores são proibidos.
A história de Eduardo Trevisan, 28, que trabalha como brand manager no Nubank, e de seu vira-lata Pingo, de 1 ano e meio, é um exemplo mais próximo desse fenômeno de voltar às raízes. O combo rotina corrida, excesso de trabalho e morar sozinho fazia com que Eduardo se sentisse cada vez mais recluso e isolado. Quando viu Foto: Shutterstock a possibilidade de adotar um animal, entendeu que aquele poderia ser um caminho para trans – formar sua realidade. “Foi uma oportunidade de resgatar um cachorrinho e de ter uma companhia em casa. Hoje, acho que ele me ajudou muito mais do que eu a ele. Saio muito mais, encontro mais as pessoas de que gosto e vivo uma vida menos digital, já que me adapto às de – mandas do Pingo de brincar e passear”, conta.
“Não me cobro mais por ter mensagens não lidas, por não responder a todos na hora, por estar online e não estar disponível”
Eduardo Trevisan,
28 anos
Na relação entre os dois, a tecnologia está presente de uma forma que também vem se tornando comum entre os donos de pet. Eduardo tem uma câmera instalada em casa pela qual pode, em tempo real, ver e falar com Pingo. O recurso, no entanto, acaba sendo uma via de mão única, já que ele evita chamar o cachorro desde que percebeu que isso o deixava confuso e ansioso. “Isso me ajuda a cuidar dele, ver se ele está bem, e a me sentir mais próximo. Tento enxergar cada vez mais o lado funcional da tecnologia, como usá-la a nosso favor”, diz. “Tento aplicar essa lógica no trabalho também. Não me cobro mais por ter mensagens não lidas, por não responder a todos na hora, por estar online e não estar disponível. Procuro ter o meu ritmo de vida e encaixar a tecnologia dentro dele, onde cabe.”
Trabalhar desconectado, aliás, é algo que o professor João Braga, 58, faz desde que entrou para a academia. Responsável pelas disciplinas de História da Moda e História da Arte na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e na Faculdade Santa Marcelina, ambas em São Paulo, ele usava, até poucos anos atrás, retroprojetores e slides para dar aulas. “Os alunos achavam um barato, falavam que era vintage, estiloso, mas a verdade é que eu sempre fui avesso a tecnologias”, conta.
Avesso mesmo: João não tem celular se quiser falar com ele, o jeito é ligar para um telefone fixo e, caso ele não atenda, deixar um recado na secretária eletrônica. Ele sempre retorna. Internet e TV também não têm espaço na casa. Apenas um rádio, que é ligado diariamente, e uma biblioteca com mais de 20 mil títulos. O tablet chegou em 2014, presente de uma aluna, mas permaneceu dois anos e meio embrulhado no papel celofane até que o professor decidis – se abri-lo para ver fotos dos sobrinhos, que sua irmã sempre mandava.
Para se adaptar à rotina digital das faculdades, como divulgar as notas nos portais internos e montar apresentações em PowerPoint, João conta com a ajuda de colegas e alunos. Recentemente, também criou uma conta no Instagram, a pedido de seus pupilos, para divulgar os conteúdos ensinados em sala e outros materiais complementares. “Criei o ‘momento Você Sabia’ para postar curiosidades e meus alunos adoram. Mas, como não tenho internet em casa, não respondo na hora, só quando levo o tablet para algum lugar. Nasci em uma época que não tinha nada disso e não desenvolvi o hábito da tecnologia. Gosto de ficar quieto, não quero ser o primeiro a divulgar absolutamente nada e continuo vivendo. Não recrimino e não nego as facilidades da internet, mas vivo bem sem ela”, brinca.
João admite, no entanto, que vem se adaptando para se relacionar com colegas e alunos. Mas com críticas e sem muitas exceções. Por estar quase sempre desconectado, ele repara com mais facilidade quando alguém pega o celular durante um almoço ou na classe – o aparelho, é preciso deixar claro, é terminantemente proibido em suas aulas. “Minha metodologia é antiga, mas funciona. O ato de pegar o lápis e copiar da lousa estimula e ajuda no aprendizado. Também peço que os alunos ajustem a postura na hora de escrever – consciência corporal ajuda a gente a se perceber”, explica. E, sempre que pode, ele evita as apresentações digitais, que demandam apagar a luz da sala, para poder olhar para todos os alunos e responder às perguntas de cada um. “A tecnologia onipresente é um caminho sem volta, mas o contato humano é imprescindível na nossa vida. Falar com os outros usando a ponta do dedo não faz sinapses.”
“Não recrimino e não nego as facilidades da internet, mas vivo bem sem ela”
João Braga,
58 anos
MODO AVIÃO
O neurologista Dr. Eli Faria Evaristo dá três dicas para reduzir o tempo gasto no celular
TIRE AS NOTIFICAÇÕES
“Cada like ou mensagem que faz seu celular tocar ou vibrar vai liberar dopamina no organismo e isso te deixará acostumado com aquela recompensa. Sem essa sinalização, a relação com a tecnologia pode melhorar.”
DEIXE O CELULAR MENOS SEDUTOR
“Estudos sugerem que, se o fundo de tela for menos convidativo, vamos pegar o aparelho com menos frequência. Por isso, escolha imagens em preto e branco ou sem muito contraste para não incentivar o hábito.”
ESTABELEÇA HORÁRIOS PARA SE DESLIGAR
“A luminosidade atrapalha a indução do sono e isso pode trazer problemas. Então minha sugestão é, depois das 22h, por exemplo, evitar o uso de celular e preferir atividades que não envolvam telas.”