A telemedicina vem ganhando fôlego no brasil – conheça os benefícios do atendimento a distância e saiba de que modo a tecnologia pode influenciar a forma como cuidamos da saúde
por Ana Clara Gaspar
Consulta médica requer planejamento e paciência. Marcar com antecedência, enfrentar o trânsito, aguardar a vez… A pandemia causada pelo novo coronavírus está, aos poucos, mudando esse cenário. A questão, agora, é manter o acompanhamento médico em dia sem sair de casa – medida essencial para evitar a proliferação da Covid-19. Nesse novo contexto, a telemedicina chega para revolucionar o atendimento médico e romper barreiras que limitavam o acesso aos serviços de saúde. “Em 90 dias, avançamos o equivalente a 10 anos na saúde e na tecnologia, e a telemedicina representa isso”, resume Allan Paiotti, diretor-executivo do Hospital Alemão Oswaldo Cruz. “Com a pandemia, aceleramos essa solução.” O termo telemedicina tem origem na palavra grega “tele”, que significa “distância”, e refere-se à prática médica realizada de forma remota. Não há um marco que aponte seu surgimento; a ferramenta foi implantada aos poucos, conforme foram inventados dispositivos como o computador e a internet. Desde 1990 a OMS reconhece a telemedicina como uma forma de oferecer atendimento em áreas remotas. No Brasil, o primeiro trabalho a utilizar recursos de tecnologia data de 1985: o acompanhamento, por meio de computadores em rede, de relatórios de pacientes contaminados por césio. Enquanto na Europa e nos Estados Unidos a utilização da ferramenta é sólida e regulada, no Brasil, até antes da pandemia, o recurso não permitia atendimentos online e a discussão era rasa. Questões como precificação, cobertura e implantação tiveram pouco debate. Porém, como a pandemia dificultou compromissos presenciais como as consultas médicas, entidades de classe e governamentais precisaram ceder: após anos de impasses, a utilização da telemedicina foi autorizada em março deste ano pelo Conselho Federal de Medicina, por duas portarias do Ministério da Saúde e por uma lei federal válida apenas enquanto durar a crise da Covid-19. A pandemia impulsionou o desenvolvimento da ferramenta. “No Hospital Alemão Oswaldo Cruz, aceleramos o ciclo de desenvolvimento de algumas funcionalidades que eram previstas para os próximos 12 a 18 meses”, conta o diretor executivo da instituição. “Versões semanais foram lançadas, e médicos e pacientes foram experimentando e sentindo-se mais confortáveis”, diz.
“Oferecemos uma medicina de qualidade, utilizando a tecnologia para acompanhar o paciente, para que ele seja tratado no momento certo, e da forma adequada“
Allan Paiotti, diretor-executivo do Hospital Alemão Oswaldo Cruz
REGULAÇÃO DA TELEMEDICINA NO BRASIL
2002
Conselho Federal de Medicina estabelece a Resolução 1.643, que define e disciplina a telemedicina no país
2018
Resolução 2.227 tenta avançar na discussão e regulamentar alguns tipos de atendimento online. Foi revogada pouco depois, por causa de manifestações de médicos e entidades de classe contrários à medida
2020
Em abril, a Lei nº 13.989, que autoriza o uso da telessaúde – não apenas para médicos, mas a todos os profissionais do setor –, foi sancionada pela presidência e entrou em vigor às pressas e em caráter temporário
ATENDIMENTO ÁGIL E DE QUALIDADE
O intuito inicial era utilizar a telemedicina para orientar e triar pacientes com suspeita de contaminação pela Covid-19. “Em março, lançamos o aplicativo que incentivava a pessoa a falar de seus sintomas. Em função da gravidade, a inteligência artificial indicava se ela deveria procurar um hospital ou se poderia ficar em casa”, explica Allan. No entanto, muita gente estava com medo de sair de casa para consultas e exames de rotina. O atendimento no pronto-socorro também diminuiu: pessoas com doenças crônicas ou vítimas de pequenos acidentes caseiros, por exemplo, agora pensavam duas vezes antes de procurarem um hospital, com medo de contágio. Mas o que fazer? Ficar sem atendimento? Adiar consultas e exames? Nada disso era o mais indicado. Por isso, a telemedicina incluiu também consultas de urgência e agendadas. Eventualmente, o brasileiro perceberá que em muitos casos não precisa ir ao pronto-socorro; o atendimento médico virtual pode resolver a questão. “Oferecemos uma medicina de qualidade utilizando a tecnologia para acompanhar o paciente, para que ele seja tratado no momento certo e da forma adequada”, explica diretor-executivo de Operações do Hospital. A ideia é oferecer um atendimento ágil e de qualidade, “seja em casa, por meio da teleconsulta, seja no ambulatório de atendimento primário, para questões de menor complexidade, ou, quando for uma situação de maior complexidade, que ele tenha de vir ao hospital, de maneira eficiente, já com a ficha aberta e check-in feito a distância, para que ele chegue e seja rapidamente atendido.”
AJUSTES E DESAFIOS
Não é fácil de um dia para o outro começar a utilizar uma plataforma de atendimento remoto. Para Allan Paiotti, um dos maiores desafios é entender que existem interferências na conversa de lado a lado. “Você precisa capturar e manter o interesse do paciente e fazê-lo sentir, de fato, a atenção naquela conversa”, afirma. Endocrinologista do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, a Dra. Tarissa Petry precisou aprender a lidar com a ferramenta. “No começo, demorou um pouco para acertarmos e ainda há dificuldade com as receitas e a orientação de como aplicar um medicamento que precisa ser injetado, por exemplo.” A especialista diz que, com a pandemia, muitos postergaram os cuidados com a saúde. “Tenho atendido muita gente que está com diabetes descompensada, que ganhou muito peso. A quarentena mudou a rotina de todo mundo”, revela a médica. De acordo com ela, essas questões podem facilmente ser resolvidas por meio de consultas remotas. “Basta a conversa, checar a alimentação, se está aplicando a insulina corretamente, se está tomando outras medicações corretamente… Às vezes, um simples ajuste já resolve”, diz. A dona de casa Irina Nigg, 30 anos, sabe bem a dificuldade de lidar com diabetes desde que sua filha, Emma Nigg Lucio, 4, foi diagnosticada com diabetes tipo 1 há dois anos. Desde então, a criança passa por consultas presenciais com endocrinolo gista a cada três meses. Quando começou a pandemia, sua mãe buscou atendimento online para manter o acompanhamento em dia e não expor a menina à contaminação; afinal, pessoas com diabetes fazem parte do grupo de risco da Covid-19. “Antes, quando eu tinha dúvidas quanto ao tratamento, anotava e guardava. Só conseguia tirar na consulta a cada três meses. Nesse aspecto, a telemedicina é ótima, pois tenho as respostas mais prontamente. Sempre que julgo importante, a médica está aberta a me responder e ajudar”, afirma. O analista de segurança da informação Paulo Cesar Barbosa, 38 anos, também se diz satisfeito com o recurso. “Não preciso desperdiçar tempo com deslocamento, com trânsito, nem me ausentar muito do meu trabalho”, diz. Ele utiliza a ferramenta desde o início da pandemia para consultas com psiquiatra e nutricionista, e torce para que continue assim. “Prefiro que no pós-pandemia seja possível seguir com o maior número possível de consultas online”, afirma.
“Tenho atendido muita gente que está com diabetes descompensada, que ganhou muito peso. A quarentena mudou a rotina de todo mundo“
Dra. Tarissa Petry, endocrinologista do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz
‘CALDEIRÃO DE IDEIAS’
Marco no investimento em tecnologia e inovação digital, o Centro de Inovação e Educação em Saúde do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, criado há dois anos, trabalha com soluções tecnológicas que prometem grandes avanços à medicina. “É um caldeirão borbulhante de ideias. Quando algo mostra consistência, começamos a transpor ao nosso dia a dia”, explica Allan Paiotti. São essas experiências com tentativas, acertos e erros que tornaram possível a introdução da teleconsulta na vida de médicos e pacientes em tão pouco tempo: “Tudo que havíamos discutido e testado foi transposto em duas ou três semanas. Fizemos uma nova versão do produto e colocamos para rodar”, afirma. O Hospital conta também com o Programa Saúde Integral, que segmenta indivíduos por perfil de risco e desenvolve uma linha de cuidado: a plataforma monitora e orienta os pacientes, para evitar o agravamento de doenças. Os wearables trarão ainda mais facilidade para colocar a ideia em prática. Estes dispositivos têm recursos de monitoramento da saúde, e são grandes aliados da telemedicina. “Estamos desenvolvendo um aplicativo que tem conectividade com um wearable. Como parte dessa solução, a telemedicina é uma maneira de interagir com esse paciente, atuando proativamente no caso de alterações e evitando que alguma doença se agrave”, anuncia Allan.
SAÚDE ACESSÍVEL
O atendimento remoto também se mostrou eficaz para alcançar uma população desassistida e profissionais isolados de bairros afastados, cidades pequenas e aldeias indígenas. A telemedicina é uma alternativa para que esse profissional busque aconselhamento para exercer sua atividade e é uma forma de diminuir filas na saúde pública. A Tele-UTI, parte do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS), tem essas premissas. Trata-se de uma parceria público-privada, pela qual instituições hospitalares, como o Hospital Alemão Oswaldo Cruz provêm apoio remoto aos profissionais que atuam em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) de hospitais públicos com pacientes contaminados. De acordo com Nidia Souza, gerente de projetos de Responsabilidade Social do Hospital, “o objetivo é o acompanhamento diário e horizontal dos pacientes com caso suspeito ou confirmado de Covid-19 das UTIs selecionadas, o auxílio às equipes por meio da discussão de caso e, consequentemente, a melhora do desfecho clínico”, explica. A Tele-UTI atua em 24 estados e conta com 101 UTIs em 79 municípios. “Temos uma equipe dedicada de enfermeiros, médicos e fisioterapeutas que realizam o atendimento diário a estas instituições, das 8h às 18h, e também com uma escala de apoio dos farmacêuticos e nutricionistas”, esclarece. A previsão é que esse apoio, que apresenta grande potencial na implementação de práticas seguras nas instituições hospitalares, segundo Nidia, siga até o fim do ano. Outra ação do PROADI-SUS é o projeto Regula Mais. Por meio de uma vídeochamada, o paciente tem contato direto com o médico especialista. A iniciativa visa regular filas de espera para consulta com especialistas e teleinterconsulta para profissionais de saúde. A endocrinologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, Dra. Tarissa, participa do projeto. “Atendi uma paciente em Recife que estava desde dezembro com diabetes descompensada e não conseguia pegar insulina no posto, não tinha receita, não tinha passado com um médico, pois os especialistas dos postos foram desviados para o atendimento da Covid”, revela. O atendimento virtual é essencial em casos como os dessas pessoas. “Converso, checo medicação, oriento. Todos os pacientes que atendi são casos graves e que não passaram com médico esse ano”, relata.
“Temos uma equipe dedicada de enfermeiros, médicos e fisioterapeutas que realizam o atendimento diário a estas instituições“
Nidia Souza, gerente de projetos de Responsabilidade Social do Hospital
COMO SERÁ O AMANHÃ?
É difícil saber como fica a telemedicina quando a pandemia acabar. Voltaremos às normas de 2002, que proíbem teleatendimentos? O Conselho Federal de Medicina trabalha em uma nova resolução, que deve sair no fim do ano, e espera-se que o sucesso da telemedicina nesses meses solidifique a presença de recursos digitais na saúde. Afinal, parte da população e de médicos e de entidades de classe, que eram reticentes ao modelo, precisaram dar uma chance à telemedicina e constataram que a traz redução de custos e amplia o acesso da população à saúde. Para o diretor-executivo de Operações do Hospital, Allan Paiotti, a telemedicina registrou uma evolução importante nesses últimos meses. “Tudo que já é trabalhado há anos em outros setores, na saúde é novo. Vai ser incorporado e permitirá que a gente trabalhe muito melhor com o paciente”, afirma. Ele acredita que o “novo normal” continuará pautado por um grau de insegurança e restrição de circulação, mas “a tecnologia está aí para ajudar”, finaliza.
Espera-se que o sucesso da telemedicina nesses meses solidifique a presença de recursos digitais na saúde.
TELESSAÚDE
Utilização de sistemas de informação, comunicação e tecnologias na área da saúde. A telemedicina pertence a esse sistema.
TELEMEDICINA
Exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde. A telemedicina abrange diversas ferramentas, entre elas:
• Teleconsulta
É de fato uma consulta, porém remota e mediada por tecnologia, geralmente via videochamada. O médico faz o que faria pessoalmente: analisa os sintomas do paciente e o encaminha para tratamento. Também emite prescrição médica e atestado
• Teleorientação
Utilizada para orientações, acompanhamento de doentes crônicos e no pós-operatório. Também é útil para tirar dúvidas a respeito de medicação e dosagens.
• Telereabilitação
Utilizada no monitoramento e auxílio a distância a pacientes que estão em casa, precisando de orientação para uma reabilitação física ou respiratória. O Hospital Alemão Oswaldo Cruz desenvolve um projeto pioneiro neste sentido.
• Teleinterconsulta
Conferência virtual exclusiva entre médicos para auxílio diagnóstico ou terapêutico. Permite a eles ouvir outro especialista sobre determinado problema do paciente