O consumo de alimentos ricos em sal, açúcar e gordura tem tornado a população brasileira cada vez mais doente; a solução passa longe dos regimes milagrosos e está mais próxima à dieta dos nossos avós
O que comer? Comida.” Em tradução livre, é assim que o jornalista americano Michael Pollan abre o primeiro capítulo do seu livro Regras da Comida (Intrínseca, 2010). A réplica aparentemente óbvia chega a ser inovadora em tempos nos quais há tantas opções em prateleiras de supermercados, restaurantes e franquias de fast food, mas pouquíssimas, de fato, alimentam. Pollan, que é famoso por sua abordagem direta sobre alimentação, prega o retorno ao que sempre foi considerado comida, em detrimento das invenções da indústria alimentícia. Ou, como ele mesmo diz, “não coma nada que sua avó não reconheceria como comida”.
Se, por um lado, é inegável que os alimentos processados tornaram disponíveis alguns nutrientes essenciais em tempos de desnutrição – da Suíça de meados do século 19 ao Brasil de poucas décadas atrás –, por outro, em grande parte graças aos cereais enlatados, biscoitos e bebidas gaseificadas cheias de açúcar, fizeram a população brasileira migrar da subnutrição diretamente para a obesidade. A taxa quase dobrou na última década: estamos falando de 20% da população. Os que estão com sobrepeso, estágio anterior à obesidade, são 58%, quase o triplo dos anos 2000. A cada ano, 300 mil pessoas são diagnosticadas com diabetes tipo II, uma das doenças relacionadas à obesidade. “A disponibilidade de alimentos altamente calóricos e pobres em nutrientes está gerando um novo tipo de desnutrição, caracterizada por um número cada vez maior de pessoas com sobrepeso que, ao mesmo tempo, têm uma nutrição precária”, constatou uma recente reportagem especial do The New York Times sobre como o alto consumo de alimentos processados vem afetando a saúde da população de baixa renda no Brasil, que até pouco tempo atrás não tinha acesso a eles. E o problema não é apenas social. As classes mais favorecidas que, em tese, têm acesso a mais informação são bombardeadas o tempo todo com novas dietas, alimentos milagrosos e tendências alimentares restritivas como, por exemplo, eliminar o glúten do menu sem recomendação médica.
No meio de todo esse turbilhão, especialistas, assim como Pollan, incentivam um retorno às origens. Segundo o Guia Alimentar para a População Brasileira, cuja segunda edição foi lançada em 2014 pelo Ministério da Saúde, alimentos in natura ou minimamente processados, em grande variedade e predominantemente de origem vegetal, devem ser a base da alimentação. Elaborada por especialistas do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens – USP), a publicação traz informações baseadas nas pesquisas mais recentes sobre o assunto.
“Alimentos in natura ou minimamente processados, predominantemente de origem vegetal, devem ser a
base da alimentação”
Guia Alimentar para a População Brasileira
AÇÚCAR E GORDURA: AMOR E ÓDIO
O açúcar talvez seja o alimento mais amado na história da humanidade e o com pior fama nas últimas décadas. Desde que os europeus começaram a ocupar as Américas com o plantio de cana, seu consumo só aumenta. Hoje, um brasileiro consome em média 55 quilos de açúcar por ano, enquanto, há pouco menos de um século, essa marca era de 15 quilos. A porção atual equivale a 32,6 colheres de chá de açúcar por dia – 60% disso está embutido nos alimentos industrializados. Vinte gramas de leite condensado, por exemplo, têm duas colheres de chá de açúcar; um copo de refrigerante de cola, quatro colheres e meia; a mesma quantidade de suco de néctar de uva, seis colheres. Um dos perigos desse alto consumo é que o açúcar refinado é rapidamente absorvido pelo corpo, que, por sua vez, vai pedir mais e mais. “Uma maçã e um bombom podem até ter a mesma quantidade de calorias, mas o corpo gasta energia para digerir a fruta, cujo açúcar é envolto em fibra. Já para digerir o açúcar do bombom, o corpo não gasta nada”, diz o Dr. Nelson Liboni, médico gastroenterologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Passamos a maior parte da nossa evolução obtendo açúcar a duras penas em outros alimentos, como frutas e cereais, e o contato em tempos recentes com sua versão refinada dá uma mensagem perniciosa ao organismo.
Ao comer um doce, o sistema de recompensa do cérebro, o endocanabinoide, libera substâncias como a dopamina, que dá uma impressão de prazer. Gera-se um círculo vicioso em que a pessoa sente que precisa repetir a dose para ter esse prazer novamente. Além dessa relação perigosa, o excesso de açúcar acaba se transformando em gordura, um dos fatores que leva à obesidade.
Não à toa, a Organização Mundial da Saúde recentemente diminuiu pela metade a quantidade de sacarose recomendada por dia, de 10% do total de calorias ingeridas para 5%, o que corresponde a 25 a 50 gramas diárias. “A recomendação pretende limitar o consumo de açúcares ocultos em alimentos industrializados, responsáveis por contribuir com inúmeros problemas de saúde, como o sobrepeso, a obesidade e as cáries”, diz uma recente nota técnica da Sociedade Brasileira de Diabetes.
“A Organização Mundial da Saúde diminuiu pela metade a quantidade de sacarose recomendada por dia”
Doze mandamentos da boa alimentação
Um apanhado das melhores dicas de Michael Pollan no seu livro Regras da Comida
- Não coma nada que sua avó não reconheceria como comida
- Só coma alimentos que tenham sido preparados por humanos
- Evite alimentos que você vê anunciados na televisão
- Evite alimentos que contenham alguma forma de açúcar (ou adoçante) entre os
- três primeiros ingredientes
- Compre seus lanches na feira
- Coma principalmente vegetais. Sobretudo folhas
- Faça refeições coloridas
- Não esqueça dos peixinhos oleosos
- Coma os alimentos doces como você os encontra na natureza
- “Quanto mais branco o pão, pior”
- Coma quando tiver fome, não quando estiver entediado
- Cozinhe
A gordura, outra substância polêmica, também causa uma espécie de “curto-circuito” cerebral. Os dois neurotransmissores no sangue responsáveis por informar ao cérebro que o corpo já está satis[1]feito, a insulina e a leptina, começam a ser produzidos em excesso com o alto consumo de gordura.
O cérebro, então, passa a ignorá-los, como forma de defesa. Pesquisas recentes com ratos já apontaram que o consumo em excesso de gorduras saturadas, as de origem animal, causam inclusive morte de neurônios em uma área do cérebro que controla a saciedade.
DIETAS INIMIGAS DA SAÚDE (E DO EMAGRECIMENTO)
Outra confusão comum no organismo se dá nas dietas restritivas e radicais, quando se tenta emagrecer muito em pouco tempo. “O corpo começa a se defender, entende que está desnutrido e passa a armazenar tudo o que entra”, explica a nutricionista Tarcila Ferraz de Campos, do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Por isso, é comum em quem faz esse tipo de regime engordar ao invés de emagrecer. A nutricionista recomenda mudanças progressivas, acrescentando alimentos saudáveis em substituição aos calóricos e industrializados. “Não adianta querer uma mudança repentina. É preciso garantir uma regularidade de nutrientes”, diz.
Essa foi a solução adotada pela hoje especialista em saúde integrativa Melissa Setubal. Quando vivia a pesada rotina de uma empresa multinacional – o que envolvia muitas vezes “almoçar” uma coxinha e um refrigerante –, ela se viu doente, tanto física como mentalmente. Hoje, longe daquela rotina, faz da alimentação saudável uma causa. “Você já viu alguém de dieta genuinamente feliz, com um sorriso largo no rosto, com brilho nos olhos? Eu não”, ela diz. Estudando o assunto há uma década, Melissa observou que “as pessoas em dieta restritiva costumam ter um semblante tenso e ficam mais agitadas, com pavio curto, ou se assustam mais facilmente com qualquer coisa”.
Ela não está sozinha. Uma de suas inspirações é a neurocientista Sandra Aamodt, autora do livro Why Diets Make Us Fat (“Por que as dietas nos fazem engordar”, sem tradução no Brasil). Sandra diz que, ao longo da história da humanidade, a fome foi um problema muito maior do que comer em excesso. Por isso, nosso cérebro sempre vai achar que precisamos engordar, nunca o contrário. “Se perdemos muito peso, ele reage como se estivéssemos morrendo de fome. E independentemente de termos começado gordos ou magros, a resposta do nosso cérebro é exatamente a mesma: engorde”, explicou Sandra em uma palestra. A solução, segundo ela, é comer com consciência. É preciso “aprender a compreender os sinais do seu corpo, para comer quando estiver com fome e parar quando não se tem fome”. Claro, a reeducação alimentar não se consegue da noite para o dia. Para se comer bem e direito é preciso mudar hábitos, manter-se constante e em vigília, até que a nova “programação” seja estabelecida e adaptada à rotina. Uma vez conquistado, o bom hábito alimentar traz efeitos benéficos para a vida toda.
Pessoas em dieta restritiva costumam ter um semblante tenso e ficam mais agitadas, assustadas e com pavio curto”
Melissa Setubal, especialista em saúde integrativa