O pouco conhecimento que ainda se tem sobre o cérebro traz constantes desafios para a medicina e faz com que toda descoberta sobre ele seja surpreendente.
Eu lembro de um jardim colorido e uma mesa posta, cheia de coisas gostosas.” Essa é a única memória que a aposentada Regina Pinhel, 65 anos, tem dos cinco dias que ficou em coma, em decorrência de um acidente vascular cerebral (AVC), ocorrido em outubro de 2015. Enquanto Regina tinha essa espécie de sonho, seu cérebro, com o auxílio de poderosos medicamentos, lutava para se recuperar do AVC hemorrágico que sofrera dias antes. No total, foram 60 dias de internação, metade deles na UTI. “Os médicos disseram que nesse tipo de AVC a mortalidade é muito alta”, diz o marido, o economista José Roberto Pinhel. “A Regina é um case de sucesso.”
Não é difícil concordar com ele ao ver o sorriso e ouvir a voz firme de sua esposa e associá-los aos de alguém que sofreu algo tão grave menos de dois anos antes. Segundo a Organização Mundial da Saúde, todos os anos, 15 milhões de pessoas sofrem AVC no mundo, sendo que dois terços ficam com sequelas graves ou morrem.
Os movimentos do lado direito do corpo de Regina foram prejudicados e às vezes é difícil controlar as emoções. Ela não lembra do momento em que ocorreu o AVC; José Roberto relata que a esposa se queixava de uma dor muito forte na parte da frente da cabeça quando isso aconteceu. No entanto, um dia, durante a sua internação, rezou de cor toda a oração de Santo Antônio, do qual é devota.
“O cérebro corresponde a 2% do peso do corpo, mas consome 25% de toda sua energia e oxigênio”
Esses altos e baixos da memória, que parecem não seguir uma lógica, podem estar relacionados com a área do cérebro lesionada ou com o tipo de padrão da memória (visual, auditiva, olfativa etc.) que é afetado, assim como com o nível de consciência (despertamento) em que a pessoa está quando interage com esses estímulos e informações.
Para o Dr. Eli Evaristo, neurologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, muitas pessoas confundem memória e linguagem: “Às vezes, quem sofreu um AVC lembra de objetos e pessoas, mas não consegue expressar a lembrança. Aí interpreta-se que a memória foi afetada, que não lembra o que é tal coisa ou não reconhece ninguém. Mas ela lembra. A dificuldade é em relação à linguagem e não à memória”.
Hoje, Regina segue em recuperação na Rede de Reabilitação Lucy Montoro, acompanhada por uma equipe multidisciplinar, além de neurologista e psiquiatra. A sua jornada, com avanços notáveis, é mais uma a demonstrar as possibilidades do cérebro, órgão que corresponde a 2% do peso do corpo, mas consome 25% de toda sua energia e oxigênio. Se, por um lado, nosso cérebro representa, em sua maior parte, um grande mistério, por outro, mostra-se bastante promissor em descobertas a serem feitas. É atribuída ao astrofísico americano Neil de Grasse Tyson a seguinte afirmação: “Tudo o que fazemos, todo pensamento que já tivemos, é produzido pelo cérebro humano. Mas exatamente como ele funciona continua sendo um dos maiores mistérios não resolvidos, e parece que, quanto mais investigamos, mais surpresas encontramos”.
A frase parece vaga, mas é bastante precisa, considerando o lugar em que a medicina se encontra hoje em relação ao órgão. “A complexidade de mapear o cérebro se dá pela dificuldade de encontrar ferramentas que consigam avaliar o comportamento de coativação das áreas cerebrais”, afirma o Dr. Eli.
LUTA CONTRA O AVC
José Roberto Pinhel e sua esposa, Regina Pinhel, que sofreu um AVC hemorrágico há cerca de dois anos.
Existe uma profunda integração entre diferentes regiões cerebrais para que o cérebro determine comportamentos e comande funções, motoras ou de fala, por exemplo. Nesse momento, muitas áreas – e não uma única região, como o córtex – são ativadas. “Para o cérebro ser estudado, precisamos de mais recursos que avaliem o seu funcionamento, e não simplesmente sua anatomia.” Ao contrário do que ocorre com o coração, órgão extensamente mapeado e cuja expressão final da sua função é ser uma bomba, o cérebro tem muitas formas de expressão funcional além de fenômenos mecânicos. ”As respostas do cérebro não são simplesmente do tipo liga e desliga, do sim e não. Pelo contrário, elas vêm simultaneamente de diversas regiões associadas e geram comandos diferentes em termos de intensidade, frequência e precisão. Nessas coativações há uma gama de ajustes e tudo isso torna o cérebro mais complexo de ser analisado do que outros órgãos”, explica o neurologista.
Avanço a longo prazo
Ainda que o mapeamento cerebral tenha um extenso caminho a percorrer, a medicina enxerga uma progressão se considerarmos a gigantesca complexidade do órgão. A década de 1990, por exemplo, ficou conhecida no meio científico como “a década do cérebro”. “Nos últimos 20 anos, muito se avançou em relação ao maior conhecimento acerca do funcionamento do órgão e de outras ciências agregadas, como a imunologia, fundamental quando tratamos de esclerose múltipla”, conta o Dr. Eli. Doença de cunho inflamatório e autoimune, a esclerose é caracterizada pela perda de mielina – substância que reveste as fibras nervosas e contribui para que o impulso nervoso percorra os neurônios. A chamada desmielinização geralmente se apresenta na forma de surtos que acontecem de maneira recorrente. “Não sabemos to[1]dos os fatores que interferem na esclerose múltipla, mas existem questões genéticas”, diz o neurologista.
Segundo ele, a esclerose é uma doença múltipla no tempo – acontecem surtos distintos em diferentes momentos – e no espaço, uma vez que diversas regiões do sistema nervoso central podem sofrer sucessivas ou simultâneas lesões. “As inflamações periódicas levam a cicatrizes, sequelas e alterações de funcionamento em várias áreas – motora, sensitiva, afetiva, cognitiva – do cérebro.”
“Para o cérebro ser estudado, precisamos de mais recursos que avaliem o seu funcionamento, e não simplesmente sua anatomia”
Atualmente, exames de medicina nuclear (PET) têm sido desenvolvidos para a detecção da beta-amilóide, proteína relacionada ao aparecimento no cérebro do Alzheimer, doença caracterizada pela degeneração progressiva dos neurônios. Essa proteína, quando agrupada a outras da mesma espécie, forma as chamadas placas amilóides. Estas, por sua vez, se embrenham entre os neurônios e, assim, fazem com que o cérebro não funcione corretamente. Funções cognitivas, como a memória, são comprometidas de maneira mais marcante.
Mas a linguagem – ocorre dificuldade de encontrar palavras e de se expressar – e a orientação espacial também sofrem danos. “O mau funcionamento de enzimas de alguma forma estaria promovendo o acúmulo da beta-amilóide. Esses acúmulos, que começariam a acontecer no cérebro cerca de 20 anos antes dos sintomas do Alzheimer apare[1]cerem, seriam a causa da doença”, diz o neurologista. “Entretanto, ainda se discute a alteração inicial que desencadeia todo o processo”, completa.
É recente, no entanto, o fato de a medicina estudar pessoas com alta taxa de beta-amilóide no cérebro, mas sem sintoma do Alzheimer, de olho em um tratamento eficaz. “Temos dificuldade em encontrar um remédio contra o Alzheimer porque os modelos existentes atualmente tratam doentes com comprometimento já avançado. Precisamos acionar pessoas que apresentem muita proteína beta-amilóide, com risco maior, mas muito antes de elas apresentarem sintomas”, afirma o Dr. Eli.
Cérebro elástico
E não é só como uma defesa a um trauma que o cérebro se modifica. Uma das descobertas mais promissoras dos últimos tempos talvez seja a chamada neuroplasticidade, mudanças no cérebro ocorridas em resposta a novas experiências. Os diferentes me[1]canismos de neuroplasticidade vão do crescimento de novas conexões até mesmo à criação de novos neurônios. Uma das experiências em que isso é evidente é a meditação, ou mindfullness. “Por meio de estudos com ressonância magnética funcional, temos evidências de que a meditação muda a substância branca do córtex cingulado anterior, região envolvida na regulação das emoções”, disse à LEVE Michael Posner, professor emérito de psicologia da Universidade do Oregon, nos Estados Unidos.
A substância branca é um conjunto de células que realiza diversas funções, como a nutrição dos neurônios. Além disso, estudos já mostraram que a meditação pode intensificar a atividade das ondas theta, um tipo de pulsação elétrica associada ao estado de calma. Posner suspeita que o fluxo de ondas theta estimule a produção de células na substância branca. Na impossibilidade de examinar cérebros humanos vivos para comprovar a hipótese, seu grupo simulou a produção dessas ondas em ratos de laboratório, ativando e desativando neurônios com uma frequência de luz igual à das ondas theta.
O caminho das pedras da recuperação do AVC
No que diz respeito ao acidente vascular cerebral, hoje há medicamentos e técnicas avançadas de tratamento, fundamentais principalmente nas primeiras horas depois do acidente. “Existem áreas do cérebro que chamamos de bastante eloquentes”, diz o Dr. Eli. “Quanto mais eloquente for uma área, mais chances tem o tecido prejudicado pelo AVC de se recuperar.” Isso porque, quando há um rompimento ou entupimento de uma veia do cérebro, como pode ser definido o AVC, a área que ficou sem sangue – e, portanto, sem oxigênio – “morre”.
Além disso, a região em volta da lesão fica “atordoada”, como define o Dr. André Sugawara, fisiatra da Rede de Reabilitação Lucy Montoro. “A partir daí, o próprio organismo começa a fazer a substituição da função exercida por aquela região para uma outra”, explica.
Uma das sequelas mais comuns do AVC é a perda dos movimentos de um ou mais membros. Nesse caso, a reabilitação consiste em “ensinar” o cérebro a fazer esses movimentos. A estudante Andressa Soares de Carvalho sofreu um AVC no fim do ano passado, que prejudicou pernas e braços.
Quem ensina seu cérebro a executar novamente os movimentos é o Lokomat, um robô sueco composto de duas pernas que são presas às do paciente, que fica vestido num colete para se manter ereto enquanto caminha por uma esteira rolante, diante de uma tela com um programa de realidade virtual que mostra um cenário a ser percorrido.
“A grande vantagem é que a máquina também aprende, facilitando o movimento quando o paciente não dá conta e aumentando o grau de dificuldade conforme ele evolui”, diz Sugawara.
Como identificar um possível AVC
CONHEÇA O SAMU, SÉRIE DE PROCEDIMENTOS SIMPLES EM CASO DE SUSPEITA DE DERRAME
SORRISO
Peça para a pessoa sorrir. Se a boca entortar para um dos lados, pode ser um AVC.
ABRAÇO
Peça para a pessoa levantar os braços. Se ela tiver dificuldade em levantar um deles ou levantar os dois e um cair, pode ser um AVC.
MENSAGEM
Peça para a pessoa repetir uma frase. Se ela não conseguir compreender ou repetir, pode ser um AVC.
URGÊNCIA
Se a pessoa apresentar qualquer um dos sinais acima, chame imediatamente o SAMU (192).
Os ratos que receberam a luz por meia hora durante 20 dias – tempo que voluntários humanos meditaram em estudos anteriores – mostraram-se mais calmos em testes de comportamento: eles permaneceram em partes mais iluminadas de uma gaiola especial, enquanto os ratos que não passaram pela “meditação” sempre corriam para as sombras. A ideia dos pesquisadores agora é analisar os cérebros para procurar mudanças físicas neles e, quem sabe, aproveitar esse mecanismo para desenvolver tratamentos para ansiedade e outras desordens nervosas em pessoas que não conseguem meditar. “Nós já mostramos também que o treino em meditação pode reduzir o vício de tabaco, mesmo em pessoas que não estão tentando diminuir o cigarro”, diz Posner.
Embora seu cérebro não tenha sido analisado em uma máquina, Bernardo Borges, designer e professor de mindfullness, credita à prática uma grande mudança em sua vida. Em 2014, depois de uma crise profissional, Borges começou a praticar o mindfullness, técnica que ele define como a sabedoria oriental da meditação sem a conotação religiosa normalmente atribuída a ela. “Eu não me atentava muito às coisas, não era presente ao que estava vivendo”, lembra. “Hoje tenho muito mais consciência sobre onde estou, faço as coisas com mais concentração”, conta. Ele acrescenta que a transformação é sutil, até difícil de descrever.
“Determinados comportamentos, como depressão, ansiedade, choro repentino, podem ocorrer também por lesões no cérebro”
“Você não vai virar uma pessoa perfeita, mas terá mais clareza mental.” Outro estudo que mostra os benefícios da meditação pode ser visto no documentário Free the Mind, de 2012, em que o psicólogo Richard Davidson, fundador do Center for Healthy Minds da Universidade de Wisconsin-Madison, mostra a melhora de vida em veteranos de guerra com estresse pós-traumático e em crianças com déficit de atenção. Davidson é especialista no assunto e parceiro do Dalai Lama, que apoia pesquisas sobre os efeitos da prática. Uma boa ilustração de como o centro de comando do nosso corpo é desconhecido se dá nos dados sobre a relação entre o número de neurônios e o tamanho do cérebro. Assim como o mito de que só usamos 10% do cérebro – sim, isso é lenda, usamos 100% –, ainda se lê em livros escolares ou mesmo na introdução de artigos científicos que o cérebro humano tem 100 bilhões de neurônios, e que, quanto maior o órgão – o nosso seria desproporcionalmente grande –, maior a quantidade de neurônios.
Em 2003, a neurocientista Suzana Herculano-Houzel, então professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e intrigada por não encontrar a fonte dessa informação, resolveu ela mesma contar o número de neurônios não só do cérebro humano como de outros mamíferos. Realizou um procedimento simples: dissolveu cérebros e contou o número de núcleos que ficavam suspensos na sopa resultante. Fez o mesmo com o cérebro de vários animais, de ratos a elefantes.
Ela viu o que nenhum cientista tinha se proposto a procurar ainda: o cérebro humano tem 86 bilhões de neurônios enquanto o do elefante (que, segundo o mito, deveria ter muito mais) tem meros 6 bilhões. Como isso se reflete em tratamentos para doenças ou desenvolvimento cerebral ainda é difícil prever, mas, certamente, avançar no conhecimento é um primeiro passo para desvendar os então obscuros caminhos do cérebro.
Doenças neurológicas x psíquicas
O Alzheimer, o AVC e a esclerose são exemplos de doenças que extrapolam o espectro físico, comprometendo a qualidade de vida emocional, uma vez que têm o poder de modificar o estado de humor do doente. Isso ocorre porque as lesões cerebrais também interferem, de fato, na parte psíquica.
Há estudos pautados em exames de ressonância mostrando que, quando lesadas, algumas áreas do cérebro geram certos comportamentos, como a depressão, por exemplo. “Modificações cerebrais fazem com que uma pessoa apresente certas sequelas emocionais.
Determinados comportamentos, como depressão, ansiedade, choro repentino, podem ocorrer, não apenas pela mudança de uma rotina de vida, mas também por lesões no cérebro”, explica o Dr. Eli Evaristo, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz.
MINDFULLNESS
O designer Bernardo Borges credita à prática da meditação uma grande mudança em sua vida